Nos abrigos superlotados de Teresina, os olhares de centenas de felinos denunciam histórias de violência, fome e desamparo. “Eles chegam muito maltratados… animal acorrentado, baleado, coberto de carrapatos, faminto. Isso mexe muito com o emocional da gente”, relata Isabel Moura, fundadora da ONG Apipa. Em períodos como dezembro e carnaval, o abandono cresce — e com ele, a vulnerabilidade.
A falta de castração, a reprodução descontrolada e o preconceito contra os gatos agravam o cenário: “Se for fêmea, pior. Se for preto, pior ainda”, resume Isabel. Entre os motivos que levam ao abandono, a chegada de filhotes e o adoecimento são os mais frequentes.
No abrigo (vídeo abaixo), os gatos dividem espaços apertados, gerando estresse, queda de imunidade e proliferação de doenças. “Eles já chegam desnutridos, estressados, com HVI, FELV… e isso favorece qualquer doença, inclusive a esporotricose”, reforça o veterinário Israel de Souza Sá, responsável técnico da Apipa.
micose que se espalha pelo país
A esporotricose é uma micose causada por fungos do gênero Sporothrix. A professora Raiza Evelline, do curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal do Piauí (UFPI), define: “É uma micose subcutânea, distribuída mundialmente, e que vem crescendo no Brasil há mais de 30 anos.”
Inicialmente transmitida do solo e da matéria orgânica para seres humanos, a doença mudou de comportamento. A dermatologista Ana Lúcia França, parceira da pesquisa, explica: “Quando me formei, a transmissão era ambiental. Hoje, o felino é o principal transmissor. É uma mudança epidemiológica importante.”
O fungo se adaptou aos gatos porque eles:
têm contato direto com solo e vegetação;
apresentam alta carga fúngica quando infectados;
transmitem com facilidade por arranhaduras, mordidas e contato com secreções.
A esporotricose não é do gato — é do descaso - Foto: Raíssa Morais/MeioNews
Como a doença aparece nos animais
A infecção começa geralmente com nódulos na pele, que evoluem para lesões ulceradas. Segundo a professora Raiza:
Exemplos das formas de como a doença pode se manifestar nos animais - Arte: Waldelúcio Barbosa/MeioNews
Israel observa esse processo diariamente no abrigo: “Recebemos muitos com característica clínica de esporotricose. Alguns evoluem bem, outros infelizmente morrem porque já chegam imunossuprimidos.”
O diagnóstico é difícil, caro e, em muitos municípios, inexistente — o que resulta em subnotificação e abandono.
A doença também é humana: sintomas e riscos
A esporotricose é uma zoonose. Em humanos, ela se manifesta nos locais de contato com o felino:
mãos, braços e rosto;
em crianças, lesões faciais são comuns.
“Começa com um pequeno ferimento. Se não tratar, vira uma úlcera e pode se espalhar pelo corpo”, explica a dermatologista Ana Lúcia França.
Casos graves acontecem em pessoas imunodeprimidas, podendo levar à forma disseminada — mais perigosa. A médica reforça um ponto crítico: “O Piauí era uma área silenciosa. Não é que não havia casos — é que não eram reconhecidos.”
epidemia oculta: por que o Piauí virou uma “área silenciosa”
Em Teresina e em várias cidades do Piauí, por muitos anos, as lesões eram confundidas com leishmaniose, doença endêmica da região. Assim explica a médica veterinária Oriana Bezerra, da Gerência de Zoonoses: “As lesões são parecidas. Sem confirmação laboratorial, a suspeita inicial era sempre leishmaniose.”
Sem diagnóstico correto, a esporotricose se espalhou de forma silenciosa — entre gatos e humanos. A partir de 2025, com a notificação compulsória, o cenário começou a mudar. Agora, cada suspeita deve ser investigada, e a parceria entre UFPI e FMS acelera as confirmações.
projeto de pesquisa no Piauí: ciência, campo e responsabilidade pública
Raiza coordena a pesquisa pioneira que mapeia casos em gatos e humanos. O “caso-zero” piauiense foi marcante: “Uma criança com lesão no olho. A mãe relatou que havia gatos doentes em casa. Foi a partir desse caso que percebemos: a doença está aqui.”
Fachada da Universidade Federal do Piauí, em Teresina, onde o estudo, está sendo realizado - Foto: Raíssa Morais/MeioNews
A UFPI investiga:
felinos com suspeita;
tutores com feridas suspeitas;
fungo no ambiente;
municípios além de Teresina, como Picos.
A parceria com o Hospital Universitário permite confirmar casos humanos por meio de:
cultura fúngica;
exames moleculares;
citologia.
A esporotricose, antes invisível, passa agora a ter rastreabilidade científica.
Preconceito, medo e abandono: o ciclo que agrava a epidemia
Uma das maiores causas de abandono é o medo. Israel relata: “As pessoas começam a tratar e, sem ver melhora, abandonam. Muitas sequer têm condição de pagar um exame ou entender a doença.” Isabel confirma: “Chega muito gato doente. Às vezes é tratável, mas a pessoa não quer continuar. Se assusta com as feridas.”
O estigma contra o gato — histórico no Brasil — piora tudo: “O gato não é o vilão da doença, é vítima. O causador é o fungo. O animal merece tratamento digno.” — professora Raiza Evelline.
Gatos abandonados em vias públicas de Teresina são alimentados por moradores - Foto: Raíssa Morais/MeioNews
O tratamento: longo, caro e essencial
O tratamento envolve antifúngicos orais, como itraconazol, por 4 a 7 meses — tanto para animais quanto para humanos.
É caro, exige isolamento e acompanhamento constante, o que afasta tutores sem condições financeiras.
A dermatologista Ana Lúcia reforça:
“Só consideramos cura após 6 meses sem qualquer manifestação da doença.”
O abandono interrompe o tratamento e aumenta o risco de transmissão.
Saúde Única: não existe saúde humana sem saúde animal e ambiental
A esporotricose escancara a necessidade do conceito Saúde Única (One Health): a integração entre saúde humana, saúde animal e meio ambiente.
A veterinária Oriana destaca:
“Não posso tratar saúde humana como uma caixinha. Ambiente degradado significa mais doenças. Tudo está conectado.”
Já a professora Ana Lúcia complementa:
“Precisamos de políticas integradas. A esporotricose não é só de pele. Em imunodeprimidos, pode ser fatal.”
O que precisa mudar: políticas públicas, educação e responsabilidade social
Todos os entrevistados concordam: O abandono é o motor da epidemia. Sem castração, sem abrigo público, sem educação e sem diagnóstico, a doença se espalha. Isabel resume o sentimento de quem vive o problema no cotidiano: “Eles já estão aqui. Não dá pra ‘sumir’ com os animais porque você não gosta. Eles existem e merecem respeito.”
Para Israel, a solução tem nome: “Saúde única. União entre meio ambiente, humanos e animais. Só assim haverá controle efetivo.”
Formas de prevenção da esporotricose - Arte: Waldelúcio Barbosa/MeioNews
A doença é do fungo — e a responsabilidade é nossa
A esporotricose não nasceu nos gatos. Eles não são culpados. São vítimas de abandono, desinformação e negligência pública. Como diz a professora Raiza: “Quando você adota um animal, o cuidado tem que ser até na hora da doença. Toda vida importa.”
E, como lembra Isabel:“A gente tenta mudar olhares. E tem mudado. Mas ainda é só uma gotinha. Precisamos de muito mais.” A epidemia silenciosa da esporotricose é, acima de tudo, um espelho social: um retrato de onde falhamos — e de onde precisamos agir.