ZOONOSE

Calazar no Piauí: Uma guerra inacabada na fronteira da saúde única

Quatro décadas após a pior epidemia, a leishmaniose visceral volta a crescer no Piauí e expõe a urgência da integração entre medicina humana, medicina veterinária, zootecnia, meio ambiente e políticas urbanas

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A leishmaniose visceral é uma epidemia que se renova no Piauí ao longo das décadas. | Foto: José Alves Filho/Reprodução O Estado

Manchete do extinto jornal 'O Estado'  em outubro de 1984 dá a tônica do pavor do Piauí com a doença na década de 80 (Foto: MeioNews/Arquivo Público/Jornal O Estado)

Há quatro décadas, a manchete do extinto jornal O Estado estampava: "Mal de Calazar faz 20 vítimas". À época, em outubro de 1984, o Piauí vivenciava uma epidemia de leishmaniose visceral – que teve início em 1980 e só se encerrou em 1986. A capital, Teresina, foi a mais afetada, registrando mais de 60% dos 1.509 casos no Estado, de acordo com dados da SUCAM-Piauí, órgão então vinculado ao Ministério da Saúde e responsável pelo controle de endemias.

Na década de 80, o município enfrentava um elevado crescimento demográfico (6,5% ao ano). Imigrantes do interior fugiam da seca e da falta de oportunidades, concentrando-se em periferias nas áreas urbanas sul e nordeste de Teresina, sob condições insalubres, sem saneamento básico, famintos e em uma cidade de clima tropical, onde as temperaturas alcançavam média superior a 33ºC.

Na época, a situação dos vulneráveis, chamados de "flagelados", disputava espaço nos noticiários com a leishmaniose, mas ambos os dramas estavam diretamente ligados. Estudioso do tema há mais de 40 anos, o médico infectologista Carlos Henrique Nery Costa – um dos pioneiros no Brasil – já apontava o terreno fértil para a alastramento da doença naquelas condições.

Pessoas em situação de vulnerabilidade, com a expansão desenfreada, e falta de saneamento básico dominavam o noticiário do Piauí na década de 80 (Foto: Francy Teixeira/Arquivo Público/Jornal O Estado)

Hoje, 41 anos depois, o MeioNews revisita o passado para revelar um presente alarmante: a leishmaniose visceral – o calazar – voltou a crescer com força no Piauí, ameaçando animais e humanos.

O calazar é transmitido pelo mosquito-palha, que se prolifera em ambientes sujos e com saneamento básico deficitário (Infográfico: Francy Teixeira/MeioNews)


O PRESENTE EM ALERTA: EXPLOSÃO DE CASOS EM 2025

O presente segue reencontrando o passado e, nas ruas da capital piauiense, um inimigo silencioso — o mosquito-palha (vetor da leishmaniose visceral) — se esconde em meio a uma crise na coleta dos resíduos sólidos, provocada por uma guerra judicial entre o consórcio responsável pela limpeza pública e a Prefeitura da capital.

Em meio ao acúmulo de lixo em Teresina com a crise da limpeza, animais buscam alimentos nos sacos com os resíduos despejados nas ruas da capital do Piauí (Foto: José Alves Filho/MeioNews)A escalada da gravidade é visível nos números compilados pela reportagem, colhidos junto ao DataSUS: entre janeiro e outubro de 2025, 110 casos de calazar foram confirmados no Piauí — um aumento de 340% em relação ao ano anterior, quando foram registrados apenas 25 casos. Em Teresina, a situação é ainda mais preocupante: são 38 casos, com quatro mortes. O crescimento na capital chega a impressionantes 850%.

Os indicadores escancaram o contraste com a percepção de queda nacional, mostrando que, no Piauí — e especialmente em Teresina —, a doença voltou a ganhar força.

Infográfico mostra que o animal não é o vilão e sim, o mosquito-palha (Infográfico: Francy Teixeira/MeioNews)

O QUE A CIÊNCIA JÁ SABE: O RISCO CONTINUA ALTO

Pesquisadora da Universidade Federal do Piauí, a médica-veterinária Socorro Pires explica ao MeioNews que, apesar de algumas oscilações, o Estado permanece entre as áreas brasileiras de maior atenção:

Atualmente, o cenário da leishmaniose visceral no Piauí ainda é motivo de preocupação. (...) Teresina é o único município do Piauí classificado como de risco intenso para leishmaniose visceral, enquanto o estado, como um todo, é considerado de alto risco.

Referência na área, a médica veterinária Socorro Pires, atua em pesquisas sobre a leishmaniose no meio norte do Brasil (Foto: Universidade Federal do Piauí)

Para ela, o problema no Piauí já não é estritamente urbano: trata-se de uma endemia distribuída em zonas urbanas, periurbanas e rurais, acompanhando um padrão nacional de urbanização da doença.

Pós-doutora no Infectious Disease Research Institute (IDRI), em Seattle (EUA), trabalhando com diagnóstico, profilaxia, epidemiologia e terapêutica para leishmaniose visceral canina, Socorro Pires alerta que, nacionalmente, a redução registrada nos últimos anos é mascarada pela subnotificação durante a pandemia, quando vigilância e diagnóstico foram enfraquecidos.


AMBIENTE, URBANISMO E O VETOR: UMA TRINCA EXPLOSIVA

Na contenção do calazar, há pilares indissociáveis que congregam Poder Público e sociedade civil. Socorro Pires destaca que o vetor — o flebotomíneo, conhecido como mosquito-palha — prospera onde o ambiente é degradado:

A urbanização da doença está diretamente ligada ao modo como o território vem sendo ocupado. (...) Quintais com muita matéria orgânica, criação de cães e galinhas próximos às moradias e saneamento básico precário são fatores decisivos.

E em Teresina, que possui risco intenso de leishmaniose, a situação do saneamento básico ainda é precária — apesar dos avanços nos últimos anos. Dados do Instituto Trata Brasil, com base nos indicadores mais recentes do Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (SINISA), ano-base 2023, apontam que somente 47,78% da população é atendida com esgotamento, e apenas 19,19% do esgoto é tratado — o quarto pior índice entre capitais do Brasil.

Em meio a esse quadro desafiador, a pesquisadora defende intervenções integradas de Saúde Única, divididas em três pilares:

  1. Saneamento e manejo ambiental

    – coleta regular de lixo
    – drenagem urbana
    – controle de resíduos orgânicos nos quintais

  2. Planejamento urbano responsável

    – evitar desmatamentos recentes
    – impedir ocupação irregular
    – avaliar impacto ambiental antes de liberar novos loteamentos

  3. Vigilância entomológica e canina contínua

    – testagem de cães
    – mapeamento de áreas críticas
    – utilização de coleiras repelentes impregnadas com inseticida

Segundo a médica-veterinária, nenhuma medida isolada funciona. A interação entre ambiente, humanos e animais exige abordagem integrada — justamente o princípio fundamental da Saúde Única.

Saúde Única congrega vários pilares (Infográfico: Francy Teixeira/MeioNews)

O OLHAR DA MEDICINA HUMANA: DIAGNÓSTICO PRECOCE SALVA VIDAS

Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical e coordenador do Laboratório de Pesquisas em Leishmanioses, o médico infectologista Carlos Henrique Nery Costa é referência mundial nos estudos sobre a leishmaniose visceral. À nossa reportagem, ele reforça o quanto o diagnóstico rápido é determinante na sobrevivência dos pacientes. Quando descoberta tardiamente, a doença pode ser fatal.

É muito importante que os pacientes sejam diagnosticados precocemente. Não é difícil diagnosticar o calazar, porque é uma doença febril. (...) Febre contínua, palidez e perda de peso são sinais clássicos. O baço aumentado é facílimo de ser detectado.

Ele lembra que o teste rápido está disponível e que a suspeita clínica deve ser imediata, evitando a evolução para quadros graves, como hemorragias, hepatomegalia e infecções secundárias.

O infectologista Carlos Henrique Nery Costa acumula mais de 40 anos de pesquisa sobre leishmaniose

Para o especialista, o calazar é hoje um desafio ambiental e social:

Locais onde se armazena lixo orgânico abandonado favorecem a proliferação dos vetores. (...) Populações pobres e desnutridas estão mais sujeitas.

Nery liderou estudos para a fabricação de uma vacina para humanos; no entanto, ainda não se chegou ao imunizante. Assim, ele pontua que a prevenção mais eficaz, comprovada cientificamente, é:

O uso de coleiras impregnadas com inseticidas nos cães domésticos.

A EXPERIÊNCIA HUMANA: VIDA EM RISCO

Um jovem ativo, empreendedor e com uma carreira promissora — assim era Micael Morais, de 30 anos, chef da alta gastronomia, que galgava passos constantes rumo ao sucesso, mas teve sua trajetória interrompida bruscamente pela leishmaniose visceral, o calazar.

A partida precoce de Micael deixou o Piauí abalado; ele foi um dos quatro óbitos registrados em Teresina por decorrência da zoonose neste ano. O empresário apresentava sintomas avançados, mas a associação entre leishmaniose visceral e tuberculose complicou o quadro de saúde e escancarou a gravidade da doença.

Jovem promissor, Micael Morais, perdeu a batalha para a leishmaniose visceral aos 30 anos de idade em Teresina (Foto: Reprodução)A história de Micael evidencia três pontos cruciais: a velocidade com que a leishmaniose pode evoluir, a importância do reconhecimento dos sintomas e a essencialidade do diagnóstico célere.

"É uma doença séria. Portanto, o paciente deve ser encaminhado para um serviço de saúde, e o médico deve elaborar um diagnóstico. Se ele suspeitar de calazar, faz um teste rápido, que é realizado em 10 a 15 minutos, e, se o teste for positivo, ele já tem que encaminhar para um serviço de referência para iniciar o tratamento", destaca o infectologista Carlos Henrique Nery Costa.

O especialista aponta que o remédio utilizado no tratamento é bastante tóxico e precisa de supervisão médica, sendo necessário realizar alguns exames antes de administrar a medicação.

Ele reitera a importância da observância de febre, palidez, perda de peso e aumento do baço na suspeita de leishmaniose. De acordo com o médico — que possui experiência de quatro décadas — alguns pacientes apresentam olhos amarelados, semelhantes a um quadro de hepatite, além de sinais de hemorragia, infecções bacterianas secundárias e inchaço. Em casos assim, o médico pode até confundir a leishmaniose com outros problemas de saúde.

Mas, de qualquer forma, se ele detectar uma febre prolongada e aumento do baço, já deve encaminhar imediatamente para o serviço de referência, porque não é uma doença qualquer; é uma doença que se acompanha de hepatomegalia e aumento do tamanho do baço, não é uma doença banal e merece investigação e, se possível, rápida. 

A rapidez no diagnóstico e o início imediato do tratamento representam uma linha tênue entre a vida e a morte.

Identificação rápida dos sintomas pode ser a diferença entre a vida e a morte (Infográfico: Francy Teixeira/MeioNews)

A ZOONOSE QUE RESPONDE À SAÚDE ÚNICA

Mestre em medicina tropical pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, a pesquisadora Amparo Salmito reforça a gravidade do quadro:

Observamos que, este ano, houve um aumento da forma visceral. Como é uma patologia transmitida por vetores, recomenda-se cuidado com a exposição.

Atuando há décadas no controle de zoonoses na Fundação Municipal de Saúde de Teresina, Salmito lembra que crianças são as mais vulneráveis e que a forma visceral pode ser fatal sem tratamento.

Em entrevista ao MeioNews, a médica-veterinária Andrezza Braga complementa, detalhando os sinais clínicos nos animais:

Entre os sinais dermatológicos, têm-se queda de pelos, descamação, feridas ou úlceras e crescimento das unhas. (...) O diagnóstico precoce possibilita resultados mais satisfatórios quanto à saúde pública.

Ela reforça que o cão não transmite diretamente a doença, sendo apenas o reservatório essencial para que o mosquito leve o parasita aos humanos.

Humanos e animais compartilham o mesmo vetor da doença e, por vezes, essa enfermidade torna-se negligenciada.

Para evitar a negligência e que informações falsas sejam replicadas, é preciso compreender os mitos e verdades da doença.

Os mitos e verdades sobre a leishmaniose visceral, mais conhecido no Nordeste como 'calazar' (Infográfico: Francy Teixeira/MeioNews)

EXTERMÍNIO COMO POLÍTICA PÚBLICA: NO PASSADO, 4,5 mil cães foram sacrificados em apenas 14 meses NO PIAUÍ

"Os chamados cães reativos, isto é, que se encontram contaminados, como é comprovado através de exames laboratoriais realizados na Universidade Federal do Piauí, têm que ser eliminados, porque esta é a única maneira de erradicar a fonte natural do calazar". A declaração, dada em abril de 1984 pelo então diretor da Sucam (Superintendência de Campanhas de Saúde Pública) no Piauí, Maurílio Araújo, a tônica de que o extermínio dos animais positivados com a leishmaniose visceral era uma política de Estado.

Reportagens do jornal O Estado, datadas de 1984, destacam o drama do calazar em Teresina. 1984 foi o ano com mais registros de casos na epidemia (Foto: Francy Teixeira/Arquivo Público/Jornal O Estado)

Para se ter ideia, entre janeiro de 1983 e março de 1984, aproximadamente 4,5 mil cães foram exterminados.

A política de sacrifício era acompanhada de outra que ficou marcada no imaginário do teresinense e que até hoje paira nas rodas de conversa: a borrifação de inseticidas, conhecidos na região como “carros fumacê”, que tinham grande impacto no equilíbrio ambiental, pois eliminavam espécies essenciais para a fauna e a flora local.

A ativista dos direitos dos animais e médica-veterinária Raíssa Protetora recorda:

Décadas atrás, se usava muito o carro fumacê, que amenizava um pouco mais a situação, mas também aquela fumaça acabava matando, dizimando outras espécies, como as abelhas. Hoje em dia, já existem produtos que são voltados unicamente para o mosquito-palha, que é o mosquito transmissor da doença.

Felizmente, com o passar dos anos e com o aprimoramento das respostas e estudos sobre a leishmaniose visceral, esse passado cruel e doloroso ficou marcado apenas nas páginas da história: a realidade hoje é outra, e com atenção e monitoramento é possível sobreviver e conviver com o calazar.

TUTORES NA LINHA DE FRENTE: CÃES DOENTES, PRECONCEITO E BOA INFORMAÇÃO

O lar de Jaqueline Inagda, arquiteta e tutora de cães desde jovem, sempre foi cheio de amor. Entre brincadeiras no quintal, muito carinho e atenção, três cachorros cresceram ali — e todos, em algum momento, receberam o mesmo diagnóstico: leishmaniose visceral, ou calazar. "Nós descobrimos por causa dos sinais da doença, como o aparecimento de feridas na pele e no focinho”, lembra.

O que poderia parecer desesperador para a maioria dos teresinenses, ainda traumatizados pelo histórico de ‘extermínio’ de animais contaminados e de carros ‘fumacê’, no caso de Jaqueline, a confirmação da zoonose foi tratada com cautela e calma.

Sabíamos que existia tratamento e que eles poderiam viver bem com a doença.

A experiência em lidar com pets positivados para a leishmaniose veio acompanhada de muita informação; a família de Jaqueline é a prova cabal de que essa convivência é possível. E o que outrora era uma ‘sentença de morte’ para os animais e humanos, agora pode ser visto por um prisma diferente. 

Claro que ninguém fica feliz ao receber um diagnóstico assim, mas também não foi algo que nos deixasse preocupados ou ansiosos, porque já tínhamos noção de como lidar com isso.

Hoje, dois dos seus cachorros que contraíram a leishmaniose já partiram — mas ambos por decorrência de questões relacionadas a velhice. Tiveram uma vida plena, com a doença controlada e sem evolução para a fase aguda. Apenas um ainda está vivo e segue com a família, sendo amado, acolhido e protegido

Em relação à casa e à nossa rotina, nada mudou, nem para nós nem para eles. Apenas seguimos o tratamento com a medicação, fazendo as interrupções necessárias, porque o medicamento não pode ser usado de forma contínua, já que pode gerar outras complicações. Os cuidados são os mesmos que teríamos mesmo se eles não tivessem leishmaniose: uma alimentação saudável e que fossem cães minimamente ativos.

Hoje, o calazar não é sentença de morte, tem tratamento e controle (Foto: Raíssa Morais/MeioNews)

"ACABOU SE TORNANDO PARTE DA REALIDADE DE TER CACHORRO EM TERESINA"


Com a frequência de casos de leishmaniose na capital do Piauí, a arquiteta detalha ao MeioNews que, sempre que ela e o marido notavam alguma manchinha, ferida ou alteração, realizavam o tratamento de imediato — tanto que nunca foi necessário interná-los por causa da doença.

Eles seguiam o acompanhamento veterinário normal, no máximo uma consulta por ano. Na verdade, dois dos nossos cachorros tinham uma doença crônica muito mais preocupante: diabetes. A leishmaniose nunca foi o principal problema deles.

De acordo com Jaqueline, seus pets sempre tiveram um acompanhamento próximo, responderam bem aos tratamentos e mantiveram boa qualidade de vida. Em alguns momentos, a tutora relata que eles chegaram até a negativar no exame, porque a doença ficou tão controlada que ‘desapareceu temporariamente’.

Como descobrimos a doença muito cedo — todos eles pegaram ainda filhotes, afinal, é uma doença endêmica na região —, acabou se tornando parte da realidade de ter cachorro aqui.

Jaqueline classifica como ‘tranquila’ a experiência — nada que trouxesse à sua família o temor de uma possível evolução para a fase aguda ou o medo de ‘perdê-los’ pela leishmaniose visceral.

Sempre acreditamos que o tratamento daria certo e que tudo ficaria bem. Dos três que tinham calazar, um morreu com 13 anos e outro com 12. Já eram cães idosos; não morreram de leishmaniose

Infográfico mostra os caminhos após o diagnóstico da leishmaniose visceral, desmistificando o cenário de 'fim de mundo' levantado anos atrás (Infográfico: Francy Teixeira/MeioNews)

A tutora e defensora da causa animal afirma que a leishmaniose visceral é uma doença que foi muito estigmatizada durante muito tempo. Hoje, com seu relato, ela luta para que a informação seja amplificada e para que a sociedade compreenda o quanto o cenário mudou.

Os cachorros eram sacrificados, mas hoje é possível conviver com qualidade de vida e sem risco de transmissão para humanos, desde que o tratamento seja feito de forma adequada. Nós já sabíamos disso tudo, então não foi um choque. E é tão comum em Teresina que, quando você tem cachorro, já sabe que isso pode acontecer a qualquer momento.

ABANDONO, SELO DE CULPA E FAKE NEWS: O LADO MAIS DURO DA DESINFORMAÇÃO

Acostumada a lidar diariamente com animais abandonados, a ativista e médica-veterinária Raíssa Protetora se emociona ao denunciar a consequência mais cruel da desinformação sobre a leishmaniose visceral em Teresina.

Já ouvimos falar de tutores que mandam eutanasiar seus animais ou que eles próprios matam os animais de forma cruel.

Sem conhecimento, velhos estigmas são retomados — estigmas que acompanham a zoonose desde a epidemia na capital piauiense. Nas ruas e nos abrigos, os animais com calazar sofrem pelo abandono e pela falta de perspectivas.

A médica-veterinária Raíssa Protetora lidera um trabalho de acolhimento de animais em situação de rua e relata os inúmeros casos de animais com leishmaniose visceral (Foto: Reprodução)

Raíssa relata até mesmo casos de tutores coagidos por agentes a entregar animais sob ameaça indireta de responsabilização.

Já vi isso acontecer e reclamei ao gerente de zoonoses. São situações absurdas e inverídicas.

A ativista dos direitos dos animais percorre a cidade dia e noite, lidando com o peso da tomada de decisão em meio à escassez de recursos e de mecanismos para dar oportunidade de tratamento a todos os animais.

Para ela, o combate à doença exige política pública, educação e cuidado integrado — itens que evidenciam a necessidade de uma observância do problema sob o prisma da saúde única.

Leishmaniose tem tratamento. (...) Fazendo o tratamento correto, a carga parasitária diminui até chegar a zero.

Raíssa Protetora luta para que a informação sobre a leishmaniose visceral seja amplificada e que os estigmas sejam quebrados (Foto: Reprodução)

A médica-veterinária faz o alerta:

A gente não vê atuação do poder público em cima disso. Teresina está suja, cheia de esgotos. É exatamente isso que faz a proliferação dos mosquitos.

O CUIDADO QUE PROTEGE TODOS

A médica-veterinária Raíssa Protetora, os especialistas da área ouvidos pela reportagem e os dados epidemiológicos são claros e convergem para uma só conclusão: o ambiente urbano desorganizado é o principal motor da leishmaniose no Piauí.

Nesse sentido, a falta de coleta de lixo constante; drenagem urbana; fiscalização de terrenos baldios; controle populacional de animais; bem como programas contínuos de encoleiramento, fazem da capital piauiense um território fértil para o vetor: o mosquito-palha.

O aumento vertiginoso dos casos levou a Fundação Municipal de Saúde (FMS) a ampliar o atendimento nas Unidades Básicas de Saúde, de modo que, desde agosto, estão sendo disponibilizados testes rápidos para detecção da leishmaniose em Teresina. O Hospital do Parque Piauí é o de referência. Em 2025, são 4 mortes registradas em decorrência da doença na cidade; porém, quando se amplia o arco epidemiológico para os últimos 5 anos, o índice sobe para 20.

Testes rápidos oferecidos na rede pública municipal para detecção da leishmaniose visceral (Foto: Fundação Municipal de Saúde) 

O PAPEL DO CRMV E A PESQUISA PIAUIENSE


Em diálogo com o MeioNews, o presidente do CRMV-PI, o médico-veterinário Miguel Cavalcante, ressalta o poder das campanhas educativas sobre a leishmaniose visceral e a integração com a saúde humana e o Poder Público.

Acompanhamos alguns pesquisadores médicos-veterinários no Piauí, em especial da UFPI, que desenvolvem pesquisas e ensaios terapêuticos. Eles trabalham em conjunto com os médicos da medicina humana.

De fato, este é, em essência, o modelo ideal da Saúde Única: pesquisas integradas, ciência compartilhada e ações conjuntas.

O médico-veterinário Miguel Ferreira é o presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Piauí (Foto: CRMV Piauí)

O CAMINHO ESTÁ NA SAÚDE ÚNICA

A leishmaniose visceral, ou calazar (como é mais conhecida a doença no Nordeste), é a expressão mais concreta do que a Saúde Única representa: não existe saúde humana se não houver saúde animal e saúde ambiental.

O resgate histórico, os relatos, as pesquisas e os profissionais destacados pela reportagem constatam que, no Piauí, o avanço da doença não é apenas um tema médico — é social, urbano, ambiental, educacional e ético.

Nesse âmbito, a leishmaniose visceral não é um problema dos animais, nem dos humanos, nem dos profissionais da saúde isoladamente. É um problema de todos.

Com o quadro apresentado, apenas a Saúde Única — como defendem médicos, veterinários, protetores, tutores e pesquisadores — oferece um caminho possível para impedir que o terror vivenciado em 1984 continue como um fantasma assombrando o Piauí em pleno 2025.