Quando o corpo dói, mas ninguém acredita. Quando a criança chora, mas o adulto desconfia. A fibromialgia, frequentemente associada a mulheres adultas, é uma condição que também atinge crianças e adolescentes, ainda que muitas vezes ignorada pela sociedade e subestimada até por profissionais da saúde.
Em Parnaíba (PI), a pequena Isabella, de apenas 10 anos, convive com dores crônicas desde os primeiros anos de vida. Já em Teresina, Isabelle, com 14 anos, enfrenta julgamentos que ferem tanto quanto os sintomas. Ambas são exemplos de uma realidade invisível e urgente: o impacto devastador da fibromialgia juvenil e a omissão de um sistema de saúde que ainda não sabe como lidar com essa dor precoce.
Em reportagem especial, o Meio News detalha relatos emocionantes de mães e filhas que, mesmo diante do cansaço e da frustração, seguem lutando por dignidade, acolhimento e um diagnóstico que vá além do preconceito.
10 ANOS DE IDADE E UM DIAGNÓSTICO DIFÍCIL
Isabella tem apenas 10 anos, mas já convive com dores que muitos adultos não suportariam. Diagnosticada com fibromialgia após anos de incertezas, a menina de Parnaíba (PI) representa uma realidade ainda pouco conhecida e muitas vezes invisibilizada: a dor crônica na infância — condição que, sem diagnóstico e tratamento adequados, afeta profundamente o desenvolvimento físico, emocional e social das crianças.
Desde bebê, Isabella enfrentou desafios de saúde. Aos cinco meses de vida, recebeu o diagnóstico de insuficiência renal crônica com deficiência de potássio no rim esquerdo, que logo afetou o direito também. Com o passar dos anos, outros sintomas se acumularam: glicemia elevada, pressão arterial baixa, tonturas, fadiga constante e dores generalizadas.
As brincadeiras dão lugar a dor: a fibromialgia afeta crianças e adolescentes (Foto: Freepik)
#PARATODOSVEREM: NA IMAGEM UMA MENINA BRANCA, DOS CABELOS CASTANHOS ESCURAS ESTÁ DE COSTAS E OLHA TRISTONHA PARA UM URSINHO DE PELÚCIA CINZA.
Desconfiança e o caminho até o diagnóstico
A mãe, Ysa Moraes, descreve um percurso doloroso em busca de respostas.
Isabella hoje tem 10 anos. [...] Aos 3 anos descobri a escoliose. [...] Isabella não tinha uma rotina normal de uma criança. Uma simples brincadeira no porquinho e ela passava mal, sentia muitas fadigas e dores.
A suspeita de fibromialgia surgiu após dois anos de investigação e inúmeras consultas com profissionais em Teresina, já que Parnaíba carece de especialistas pediátricos.
Fomos para vários profissionais até encontrar anjos preparados para chegar onde chegamos. Não foi fácil. A dificuldade é muito grande. Passamos dois anos na investigação até chegarmos na fibromialgia.
"senti vários preconceitos"
A fibromialgia juvenil, embora mais comum em adolescentes, pode se manifestar já na infância. Segundo especialistas, ela é caracterizada por dor musculoesquelética difusa por mais de três meses, fadiga, distúrbios do sono, cefaleias e sintomas como ansiedade ou desconforto gastrointestinal. Sua origem é multifatorial, e o diagnóstico depende de critérios clínicos, já que exames laboratoriais costumam apresentar resultados normais.
O problema é que, por desconhecimento ou preconceito, o sofrimento das crianças é frequentemente descredibilizado, como relata Ysa. “Eu, como mãe, senti vários preconceitos de alguns profissionais da saúde. Escutava coisas absurdas como: ‘Você não acha que é você quem procura doença na criança?’”
Tratamentos limitados e cuidados integrais
Hoje, cinco anos após o diagnóstico, Isabella enfrenta dores nas pernas e braços, crises de vômito, cefaleia constante e até bursite lombar. A medicação é limitada pelas condições renais, e o tratamento é centrado em terapias complementares, acompanhamento psicológico e psiquiátrico, fisioterapia e técnicas de relaxamento.
Eu sou massoterapeuta, ajudo bastante ela com exercícios físicos. Trabalho muito com ela o Reiki, a aromaterapia e o relaxante.
O sonho de acolhimento e respeito
Ysa sonha com um futuro em que a filha tenha seus direitos reconhecidos.
Seria um sonho saber que minha filha fosse amparada, tivesse respeito por onde andasse, mais amparo na escola, nas viagens e nos hospitais. Meu sonho é uma ONG onde ela tivesse amparo, seus direitos, fosse vista como uma pessoa com deficiência que precisa ser acolhida. Atendimento especializado no SUS, prioridade em filas e estacionamento, criação de centros de tratamento, capacitação.
Sem amparo estatal, a rotina da família gira em torno dos cuidados com Isabella, o que impacta também a saúde emocional e financeira da mãe.
Isso me custou tão caro: engolir muitas coisas, engolir choro. Me preocupo demais com o amanhã da minha filha, o que ela vai enfrentar. Quero muito que ela esteja amparada para conseguirmos fazer de tudo por ela.
A dor tem voz, mas nem sempre é ouvida
Ao MeioNews, a reumatologista pediátrica, Liana Soido, explica:
Os sintomas são semelhantes tanto na fase adulta, como na infância e adolescência, porém, em geral, as crianças não conseguem ainda expressar todas as suas sensações de forma tão explícita.
Ou seja, o diagnóstico, portanto, pode ser adiado por anos, com impactos profundos na qualidade de vida e na saúde mental dos pequenos.
Giuliani Rosso possui um grupo de pacientes com fibromialgia (Foto: Reprodução Instagram)
Diagnóstico: quando a dor é tratada como "frescura"
Giuliani Rosso, advogada e presidente do grupo Fibropi, conhece essa jornada de invisibilidade desde cedo:
Eu tenho sintomas desde muito cedo, desde a infância. Eu sempre fui uma criança mais sensível, que não conseguia fazer todos os exercícios físicos, cansava rápido.
Hoje, ela luta por mais políticas públicas para pacientes com fibromialgia e compartilha sua trajetória: “Meu diagnóstico foi bem difícil, porque eu já tinha ido em inúmeros profissionais... tratavam como se fossem outras doenças. Infelizmente, não existe um exame que você faça que positive para fibromialgia”.
O que se impõe, portanto, é uma observação clínica atenta.
“Existem alguns critérios diagnósticos já estabelecidos, porém a avaliação médica, juntamente com alguns exames para exclusão de demais causas confundidoras, serão as principais ferramentas”, pontua Dra. Liana.
Os gatilhos da dor: trauma, bullying e silêncio
Na infância e adolescência, os gatilhos da fibromialgia podem ser particularmente cruéis.
“Especialmente na infância e adolescência, os traumas no ambiente escolar, como bullying, podem ser os grandes desencadeadores dos sintomas”, alerta a reumatologista.
A fibromialgia tem base numa desregulação da percepção da dor. O cérebro da criança ou adolescente passa a interpretar como dor estímulos antes inofensivos. Situações como luto, separações familiares e conflitos em casa também figuram entre os fatores de risco.
Esse ciclo se reflete diretamente na rotina: “As crianças e adolescentes costumam apresentar faltas na escola ou ter que sair mais cedo da aula pelas queixas dolorosas”, acrescenta Dra. Liana. E mais:
Perdem o interesse pelas brincadeiras com amigos e passam a usar com mais frequência as telas... tornando-se mais isoladas do convívio familiar e escolar.
Tratamento além da dor: corpo, mente e afeto
O tratamento é multidisciplinar e individualizado. E, como reforça Giuliani, deve ir além da dor física:
Quem tem fibromialgia tem uma predisposição maior a ter ansiedade ou depressão. No meu caso, eu cheguei a ter momentos de ansiedade e essa ansiedade, se não tratada, consequentemente piora o grau de dor.
Liana Soido é reumatologista pediátrica e alerta para a necessidade de dar atenção aos sinais (Foto: Reprodução Instagram)
#PARATODOSVEREM: NA IMAGEM, UMA MÉDICA COM JALECO BRANCO ESCRITO 'DRA LIANA SOIDO - PEDIATRA', DE CABELOS CURTOS CACHEADOS, USA UM ÓCULOS RETANGULAR E SORRI PARA FOTO.
A reumatologista pediátrica Liana Soido também reforça:
A principal linha de tratamento se baseia na terapia não farmacológica. O plano terapêutico envolve abordagem psíquica, psicoterapia, prática regular de atividade física e mudanças no convívio familiar.
Giuliani Rosso conta com detalhes como os cuidados foram se somando:
“Já fiz inúmeros tratamentos. É essencial que se tenha acompanhamento com reumatologista, psiquiatra, psicólogo, nutricionista...”. A prática de atividades prazerosas também faz parte: “É interessante que quem tem fibromialgia pratique um esporte que traga felicidade. A endorfina é essencial”.
Fibropi: rede de acolhimento e resistência
Giuliani também lidera o Fibropi, grupo com mais de 640 integrantes no Piauí. E, sim, há crianças e adolescentes diagnosticados na rede.
A importância do grupo é que a gente gera apoio mútuo... nós dividimos o nosso dia a dia com a fibromialgia. A gente se sente mais acolhido e livre para falar sobre nossas dores.
A luta agora é também pela informação. “A gente vem fazendo um trabalho de divulgação muito amplo. Quando informamos mais pessoas, ajudamos mais gente a chegar ao diagnóstico e buscar tratamento. A gente diminui o preconceito, o estigma e o assédio moral no trabalho”, defende.
Para ela, falar sobre fibromialgia é também um ato político e urgente: “Já imaginou você passar anos sem saber o que tem? As pessoas dizendo que é mimimi, que é frescura, que você não tem nada?”.
O diagnóstico da dor crônica na infância ainda é negligenciado no sistema de saúde (Foto: Freepik)
#PARATODOSVEREM: NA IMAGEM UMA CRIANÇA DE PELE BRANCA E CABELOS CASTANHOS CLAROS VESTE UMA CAMISETA CINZA E ESTÁ DEITADA COM UMA EXPRESSÃO DE DOR, COM OS BRANÇOS RECOLHIDOS PRÓXIMOS AO ABDÔMEN.
O desafio de enxergar o que não se vê
A fibromialgia é uma dor invisível, mas que afeta cada aspecto da vida de quem convive com ela desde os primeiros anos. É urgente dar crédito às dores das crianças, ouvir com atenção seus sinais e investir em diagnóstico precoce e políticas públicas.
“Essas incapacidades sempre vão existir num grau menor ou maior, infelizmente. Mas temos tratamento e temos que ir em busca dele”, conclui Giuliani.
Quando a dor chega cedo demais
Imagine ter 14 anos e não conseguir dormir por causa da dor. Acordar cansada, perder provas, não ter energia para ver os amigos. Pior: escutar que está exagerando. Para Isabelle Rezende, a adolescência chegou com um fardo invisível e pesado. Em meio às transformações naturais da idade, ela tenta conviver com algo que o corpo sente, mas o mundo insiste em não enxergar: a fibromialgia.
“A dificuldade de fazer coisas normais no dia-a-dia é a perca de oportunidades por se sentir impossibilitada”, desabafa a adolescente.
Diana e Isabelle Rezende; a jovem convive com a fibromialgia (Foto: Arquivo Pessoal)
#PARATODOSVEREM: NA IMAGEM APARECE DIANA REZENDE (UMA MULHER BRANCA, DE CABELOS RUIVOS E USANDO UM VESTIDO BEGE) ABRAÇADA DE ISABELLE REZENDE (UMA MENINA BRANCA, DOS CABELOS PRETOS E QUE USA UM ÓCULOS RETANGULAR); ELAS PARECEM ABRAÇADAS, SORRINDO. AO FUNDO, IMAGENS DE ESCULTURAS DE SANTOS EM UMA IGREJA.
Uma jornada cheia de perguntas sem resposta
A história de Isabelle começa em março de 2023, quando ela teve Chikungunya. Meses depois, começaram as dores — e as dúvidas. “Fomos pela primeira vez à reumatologista em junho de 2023, achando que era sequela da virose, mas a médica suspeitou de fibromialgia”, conta sua mãe, Diana Rezende.
A resposta, no entanto, não veio fácil. “A médica não foi a fundo, disse para tratarmos de início com terapia e exercício físico. Isabelle fez uns três meses de natação, mas acabou parando”, lembra a mãe. As dores vinham em crises intercaladas com dias normais, o que confundia ainda mais o diagnóstico e o cotidiano da família.
Quando procuraram outros especialistas, enfrentaram um sistema despreparado para acolher crianças com fibromialgia. “Não achávamos médicos que atendessem abaixo dos 14 ou 15 anos. Fomos na psiquiatra, depois encontramos uma anestesiologista especialista em dor. Só em 2025 conseguimos voltar a um reumatologista pediátrico, agora que ela já tem 14 anos”, explica Diana.
O diagnóstico que nunca chega — e a vida que não para de doer
Mesmo depois de uma bateria de exames, a certeza ainda não existe. “Ela ainda não tem o laudo, porque a médica disse que não pode fechar um diagnóstico assim tão cedo, até o momento é somente suspeita porque a doença é muito complexa”, relata Diana.
Enquanto isso, a rotina da casa inteira gira em torno das crises. “A fibromialgia impacta MUITO na rotina diária, não apenas da minha filha, como da minha casa inteira”, desabafa. O sono de Isabelle é profundamente afetado: “Ela fica acordando às vezes uma vez ou até a noite toda por conta da dor”.
Cada gatilho — uma prova na escola, uma viagem, uma mudança no clima — pode ser o estopim para dias de dor intensa. E, com a dor, vem o isolamento:
Ela não consegue ir para a aula, não tem motivação para sair do quarto, não quer sair de casa.
Julgar dói ainda mais
Mas não são apenas as dores físicas que machucam. O preconceito, a falta de empatia e o descrédito também sangram. Diana é enfática: “O que eu gostaria que as pessoas soubessem é que elas não tivessem o olhar de julgamento, sempre, sempre. Sempre é um olhar de julgamento”.
Ela fala da dor invisível que muitos insistem em minimizar. “A pessoa que está sofrendo, com ansiedade, que aumenta a dor, isso só piora. A pessoa se sente minimizada. Não tem como outra pessoa medir a dor dela”, afirma. E completa:
Quando alguém diz que ‘ah, não, tu não tá sentindo dor’, a pessoa se sente impossibilitada, se sente invalidada.
Diana lembra, com dor, da falta de preparo no sistema de saúde: “Até mesmo as reumatologistas não tinham tanto tato... Não notei segurança para falar sobre o tratamento. Parece que tudo ainda é muito novo”.
"ainda é tudo muito precário"
O tratamento, ela reconhece, é multidisciplinar — terapia, fisioterapia, psiquiatria, atividade física, manejo da dor. Mas há pouca gente preparada para cuidar de jovens com fibromialgia. “Eu achei a anestesiologista especialista em dor mais preparada do que a própria reumatologista. Mas é uma profissional pouco conhecida, que veio de Minas, nova no estado. Ainda é tudo muito precário”, lamenta.
Diana também aponta o descaso do sistema de saúde com o público infantojuvenil: “Os reumatologistas que encontrei estavam voltados para outras áreas. E quando se fala em medicamentos controlados, as médicas não têm segurança. Isso assusta ainda mais”.
Empatia, acolhimento e menos julgamento
A mensagem que mãe e filha deixam é clara: não se julga a dor do outro. “A dor dela está muito ligada à ansiedade. Quando alguém de fora reprime ela, eu vejo que a dor aumenta”, relata Diana.
elas não estão sozinhas
Isabella e Isabelle não estão sozinhas. Seus relatos, embora profundamente individuais, revelam um cenário comum: a dificuldade em fazer o mundo acreditar que dor também tem rosto infantil. A fibromialgia, ainda invisível aos olhos da maioria, é real, limitante e exige um novo olhar — mais empático, mais técnico, mais humano. É preciso romper o ciclo de invisibilidade e julgamento, ampliar a formação médica, garantir diagnósticos precoces e políticas públicas voltadas à infância e juventude. Porque o que hoje se interpreta como manha, amanhã pode custar o futuro de uma geração inteira.