No Brasil, cerca de 80% das matrículas na educação superior estão em instituições privadas. Oitenta por cento. Esse número não dá margem para qualquer interpretação que não seja a de que, aqui, a graduação é essencialmente particular. Contudo, nos últimos dias, foi anunciada a assinatura de um convênio técnico-científico entre o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com o objetivo de elaborar propostas para aprimorar o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes).
Qualquer pessoa que entenda minimamente a operacionalização do ensino superior no país compreende, de imediato, o profundo descompasso entre as duas informações apresentadas no parágrafo anterior. Tem-se um abismo repleto de incoerências entre a realidade e o que está sendo proposto por meio dessa iniciativa.
A criação de um grupo de trabalho formado por USP, Unicamp e Inep para discutir a atualização dos indicadores de qualidade e de impacto social do ensino superior brasileiro merece atenção tanto por aquilo que revela quanto pelo que omite. Para começar, causa estranheza que um debate dessa magnitude seja conduzido sem qualquer representação do setor que responde pela imensa maioria das matrículas no país.
Além do volume global já mencionado, é nas instituições privadas de educação superior que se encontram, em maior número, alunos de baixa renda, trabalhadores, primeiras gerações da família a ingressar no ensino superior e estudantes residentes fora dos grandes centros urbanos. Ignorar essa realidade ao discutir critérios de qualidade e impacto social não é apenas uma falha metodológica; é um erro conceitual que compromete a legitimidade de qualquer modelo avaliativo que venha a ser proposto.
Fica evidente que a ausência completa de representantes do setor privado em um grupo formado por duas universidades públicas estaduais, que sequer integram o Sistema Federal de Ensino, e por um órgão governamental, inevitavelmente produzirá distorções. Avaliações concebidas a partir de uma visão homogênea, ancorada na realidade de instituições altamente seletivas, fortemente financiadas pelo estado e voltadas prioritariamente à pesquisa, dificilmente conseguirão capturar a complexidade da graduação brasileira.
O risco é evidente: indicadores que façam sentido para uma parcela muito restrita do sistema, e que não dialoguem com as condições concretas em que opera a maior parte das instituições e, sobretudo, com as necessidades reais dos estudantes.
É justamente no setor privado que o impacto social do ensino superior se materializa de forma mais ampla e direta. Foram as faculdades, centros universitários e universidades privadas que interiorizaram a oferta de cursos, ampliaram o acesso, absorveram a expansão da demanda e criaram oportunidades onde o poder público não chegou, ou chegou de forma insuficiente. São elas que, diariamente, traduzem impacto social em mobilidade econômica, empregabilidade, formação profissional e desenvolvimento local. Desconsiderar essa atuação ao redefinir critérios de avaliação é esvaziar o próprio conceito de impacto social.
O Sinaes, desde sua criação, foi concebido como um sistema nacional, plural e representativo da diversidade do ensino superior brasileiro. Qualquer processo de reformulação que pretenda ser coerente com essa premissa precisa, necessariamente, ouvir quem está na linha de frente da oferta educacional. Nesse sentido, é difícil justificar que entidades com reconhecida legitimidade e representatividade, como a Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) e o Fórum Brasil Educação, não estejam no centro desse debate. São essas organizações que acumulam conhecimento técnico, dados empíricos e experiência concreta sobre o funcionamento da graduação no país.
Não se trata de negar a relevância acadêmica da USP ou da Unicamp, nem de questionar o papel institucional do Inep. Trata-se de reconhecer que nenhuma dessas instituições, isoladamente, representa o sistema como um todo. Um modelo de avaliação construído sem diálogo amplo corre o risco de reforçar assimetrias históricas, impor parâmetros inadequados e, no limite, comprometer políticas públicas que deveriam induzir melhoria de qualidade com equidade e realismo.
Se o objetivo declarado é aprimorar os indicadores de qualidade e de impacto social do ensino superior, o caminho não pode ser o da exclusão. Pelo contrário, exige escuta qualificada, participação efetiva e reconhecimento do papel central do setor privado na democratização do acesso à educação superior no Brasil. Reformar o Sinaes sem considerar essa realidade não apenas fragiliza o processo, como distancia o sistema avaliativo do país real, ou seja, aquele onde milhões de estudantes constroem, todos os dias, seu projeto de vida por meio da educação.
- ensino superior Brasil
- indicadores de qualidade
- impacto social
- Sinaes
- Inep
- USP
- Unicamp
- avaliação educacional
- setor privado
- matrículas privadas
- desigualdade educacional
- representatividade
- proposta de avaliação
- qualidade educação superior
- ensino superior particula
- políticas públicas educação superior
- avaliação institucional
- Enade
- Censo da Educação Superior.