Nas montanhas enevoadas do nordeste de Portugal, no Vale do Côa, uma cena de rewilding ganha forma ao amanhecer. Em meio à névoa que cobre o leito do rio, uma manada de cavalos Sorraia – uma raça portuguesa em risco de extinção – pasta tranquilamente, seus corpos curtos e musculosos quase se camuflando entre os arbustos e a grama fria da manhã.
Com o avanço do sol e o dissipar da névoa, revelam-se os desfiladeiros profundos do vale, onde abutres e águias fazem ninho nas encostas rochosas. Mais ao sul, outra manada percorre o terreno com surpreendente agilidade: são os tauros, grandes bovinos de pelagem preta e castanha, com imponentes chifres curvados. Esses animais são resultado de um projeto ambicioso de recriação do auroque – o ancestral selvagem do gado moderno, extinto no século 17.
A introdução dos cavalos Sorraia e dos tauros faz parte da missão da Rewilding Portugal, organização sem fins lucrativos que trabalha para restaurar ecossistemas e reintroduzir espécies selvagens ao longo de um corredor ecológico de 1.200 km², que liga o rio Douro, ao norte, à serra da Malcata, ao sul.
“Estamos promovendo o retorno de espécies nativas e substituindo aquelas que desapareceram, como o auroque e o cavalo-bravo”, explica Pedro Prata, líder da Rewilding Portugal. Desde sua fundação, em 2019, a ONG já libertou duas manadas com 20 cavalos Sorraia e 15 tauros em uma área de 20 km², com o objetivo de reativar os processos naturais através do pastoreio.
Histórico
Há milênios, auroques e cavalos selvagens migravam livremente por essa região, desempenhando papel crucial na manutenção das paisagens de pastagens. Tamanha era sua importância para os habitantes pré-históricos que eles eternizaram essas criaturas em gravuras nas rochas.
Hoje, o Vale do Côa abriga uma das maiores coleções de arte rupestre paleolítica ao ar livre do mundo, com representações de cavalos, auroques e outras espécies esculpidas há cerca de 24 mil anos em afloramentos de xisto. Essa herança levou a região a ser reconhecida como Patrimônio Mundial pela Unesco.
O auroque, que aparece com destaque nessas gravuras com seu porte massivo e longos chifres, foi o maior mamífero terrestre da Europa. Sua extinção, registrada em 1627 na Polônia, é considerada um dos primeiros casos documentados da perda de uma espécie devido à ação humana.
Parceria importante
Na tentativa de restaurar sua função ecológica, a Rewilding Portugal firmou parceria com a Fundação Taurus, da Holanda, que há mais de uma década conduz um programa de retrocruzamento genético. “Queríamos desenvolver um substituto que representasse o que os auroques foram”, afirma Ronald Goderie, ecologista e diretor da fundação.
Utilizando raças de gado do sul da Europa que ainda preservam traços dos auroques – como porte elevado, pernas longas, corpo esguio e chifres robustos – o projeto busca criar um animal capaz de viver em liberdade e se adaptar à presença de predadores.
“Combinamos raças primitivas para nos aproximar o máximo possível, geneticamente, do auroque original”, diz Goderie. Para ele, os tauros têm potencial para assumir o papel ecológico dos antigos auroques, promovendo a abertura de paisagens e aumentando a biodiversidade local.
“O pastoreio natural reativa processos que desapareceram dos ecossistemas. Isso resulta em mais habitats e mais vida selvagem”, conclui.