O Reino Unido autorizou o funcionamento da Garfield.Law, primeiro escritório de advocacia movido por inteligência artificial (IA) no mundo. Regulada pela Solicitors Regulation Authority (SRA), a empresa oferece serviços de baixo custo, como cartas de cobrança por £2 e ações judiciais de pequeno valor por £50, sempre sob supervisão obrigatória de advogados humanos.
A decisão foi considerada um marco regulatório. Para Philip Young, fundador do escritório, a proposta é democratizar o acesso à justiça:
“Nosso objetivo é resolver questões legais simples de forma mais rápida, barata e eficiente, levando serviços antes inacessíveis a muitos consumidores e pequenas empresas.”
Como funciona o Garfield.Law
- O usuário acessa a plataforma online e descreve sua demanda;
- A IA analisa o caso e sugere soluções como notificações, negociações ou ações judiciais;
- Advogados humanos supervisionam etapas sensíveis;
- O cliente acompanha o processo em tempo real;
- A cobrança é feita por serviço, e não por hora de trabalho;
- O foco está em causas de até 10 mil libras, típicas do small claims track britânico.
Para obter a licença, a Garfield.Law precisou comprovar mecanismos contra “alucinações jurídicas”, manter registros auditáveis, adotar filtros contra vieses algorítmicos e garantir seguro profissional.
Reações divididas
A iniciativa reacendeu debates sobre o futuro da advocacia. Para André Porto Alegre, jornalista e especialista em gestão de escritórios, o movimento era inevitável:
“Diante do encantamento da advocacia pelas possibilidades da inteligência artificial, era necessário um começo e o Garfield.Law é exatamente isso. Ainda é cedo para avaliar resultados, mas os primeiros sinais são bons.”
Já Solano de Camargo, sócio do LBCA e presidente da Comissão de Privacidade, Proteção de Dados e IA da OAB-SP, foi mais crítico: “É uma automação rastaquera.”
Para Alexandre Zavaglia, presidente da Comissão de Tecnologia e Inovação da OAB-SP, o modelo é viável, mas exige cautela:
“Faz sentido aplicar IA aonde há grandes volumes e baixa complexidade. Mas há um limite jurídico para isso. E o desafio, no Brasil, é saber se o marco legal vai acompanhar essa evolução.”
O papel do advogado muda
Especialistas concordam que a tecnologia não eliminará a profissão, mas transformará seu papel. Para Porto Alegre, a advocacia precisará se reinventar:
“Na história da evolução, o papel dos humanos sempre mudou com novas tecnologias. A advocacia será impactada, mas encontrará espaços, possivelmente na altíssima especialização e em novas competências.”
Zavaglia lembra que, apesar dos avanços tecnológicos, o conhecimento jurídico continua central:
“Outro dia me perguntaram o que é preciso estudar para usar IA generativa. E eu respondi: Direito. Quem não souber Direito ficará à mercê de um conteúdo que parece correto, mas pode estar totalmente descolado da realidade.”
Justiça de “segunda classe”?
O surgimento do Garfield.Law também levantou a hipótese de criar uma justiça paralela para casos menores. Zavaglia reconhece o risco, mas aponta benefícios:
“Se desenvolvidos com todos os cuidados éticos, esses modelos podem ampliar o acesso à justiça.”
Camargo faz uma comparação com o Brasil:
“O Juizado Especial Cível dispensa advogados, oferece audiências rápidas, sentença simplificada e custo zero. O Garfield.Law é uma solução privada e paga, portanto menos inclusiva.”
E o Brasil?
Enquanto o Reino Unido aposta em um modelo regulado e pioneiro, o Brasil segue em outra direção. Escritórios nacionais já usam ferramentas como o Harvey AI para análise de contratos e litígios de massa. A OAB publicou recomendações sobre o uso de IA, e o governo federal contratou a OpenAI para reduzir custos em disputas judiciais.
No entanto, a regulação avança lentamente. O PL 2.338/2023, que trata do uso de IA, ainda tramita na Câmara dos Deputados.
Para Porto Alegre, resistir é inútil:
"Negar que o que acontece no mundo impacta o Brasil é um pensamento negacionista e antiglobalista. A IA será um acelerador de uma revisão regulatória.”
Camargo conclui que a experiência britânica não é diretamente replicável:
“Faz mais sentido reforçar nossas diretrizes de governança algorítmica e sigilo, mantendo o advogado responsável pela gestão dos processos.”