A arqueóloga Niède Guidon morreu nesta quarta-feira (4), aos 92 anos. Ela ficou conhecida por liderar pesquisas que mudaram o que se sabia, ou se achava que sabia, sobre a chegada do ser humano ao continente americano.
Formada em história natural pela USP e doutora pela Universidade de Paris, Niède começou a investigar a região da Serra da Capivara, no Piauí, ainda nos anos 1970.
Mas sua história com o local começou antes, em 1963, quando ouviu falar das pinturas rupestres espalhadas pelo interior do estado. Tentou chegar lá dirigindo um Fusca, sem sucesso. No ano seguinte, deixou o Brasil para fugir da ditadura militar. Voltou em 1970 e, finalmente, pôde ver de perto o que tanto a intrigava.
MISSÃO NO PIAUÍ
O que encontrou ali não era comum. E ela sabia disso. A arqueóloga organizou uma missão de pesquisa, com apoio do governo francês, e passou a dividir seu tempo entre Paris e São Raimundo Nonato, cidade a 530 km de Teresina.
Os vestígios encontrados na região apontavam uma ocupação humana bem mais antiga do que dizia a teoria dominante, a Teoria de Clóvis, que defende que os primeiros habitantes das Américas chegaram pelo Estreito de Bering há cerca de 13 mil anos.
Niède defendia que a presença humana na Serra da Capivara podia ter começado há 60 mil anos, talvez até 100 mil. A afirmação causou polêmica e foi alvo de muita resistência, principalmente de pesquisadores norte-americanos e brasileiros. Durante anos, ela foi questionada, mas nunca recuou.
Em 2010, o arqueólogo Walter Neves, que havia sido um dos seus maiores críticos, declarou estar 99,9% convencido da validade das descobertas. Sobre Niède, disse: “A felicidade demanda coragem. E, se ela tem um nome, deve ser Niède Guidon.”
As ideias dela ajudaram a abrir espaço para hipóteses alternativas sobre o povoamento das Américas, como a de que povos vindos da Polinésia ou da Austrália possam ter cruzado oceanos e chegado à América do Sul antes do que se imaginava. Descobertas mais recentes no Chile e na Califórnia, com datações de até 130 mil anos, deram força àquilo que Niède dizia há décadas.
criação do Parque Nacional Serra da Capivara
Além do trabalho acadêmico, ela foi a principal responsável pela criação do Parque Nacional Serra da Capivara, em 1979, e da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), que cuida do acervo arqueológico e da preservação da área. O parque foi reconhecido pela Unesco como Patrimônio Mundial da Humanidade em 1991.
Mas manter o parque não foi simples. Niède batalhou por verbas, denunciou o abandono, criou projetos de desenvolvimento para a região, como a fábrica de cerâmica para empregar moradores locais, e chegou a usar dinheiro do próprio bolso para manter tudo funcionando. Catalogou mais de 1.300 sítios arqueológicos, sendo que 200 deles estão abertos à visitação.
Também enfrentou críticas e incompreensões. Muitas comunidades foram retiradas da área do parque e levadas para áreas urbanas, o que gerou tensão social. Apesar disso, Niède manteve sua posição, acreditando que a preservação era essencial.
Nunca se casou, não teve filhos e costumava dizer que não via diferença entre ela e os homens que também lideravam projetos científicos. “Esse tipo de coisa está na cabeça das pessoas, não na minha”, afirmou em entrevista.
Niède Guidon nasceu em Jaú, interior de São Paulo, em 1933. Seu legado é uma nova forma de pensar o passado do Brasil e das Américas, e a certeza de que a ciência precisa, sempre, de coragem.