O Brasil se despede nesta quarta-feira (4) de Niède Guidon, uma das maiores arqueólogas da história do país. Aos 92 anos, ela deixou um legado científico que mudou o entendimento sobre o povoamento das Américas e transformou o Piauí em referência mundial para a arqueologia pré-histórica.
PAULISTA DE CORAÇÃO PIAUIENSE
Nascida em Jaú, no interior de São Paulo, em 1933, filha de pai francês e mãe brasileira, Niède Guidon formou-se em História Natural pela USP e seguiu para a França, onde concluiu doutorado na Universidade Paris-Sorbonne.
Foi durante seus estudos que ela teve o primeiro contato com registros das pinturas rupestres encontradas no Sul do Piauí, que mais tarde mudariam o rumo da sua vida e da ciência arqueológica no Brasil.
CRIAÇÃO DO PARQUE NACIONAL DA SERRA DA CAPIVARA
A partir da década de 1970, liderando missões arqueológicas na região de São Raimundo Nonato, Guidon coordenou escavações que identificaram mais de 1.300 sítios arqueológicos, muitos com evidências de presença humana datadas de até 48 mil anos.
Esses achados desafiaram a teoria dominante de que o homem chegou às Américas há cerca de 15 mil anos pelo Estreito de Bering, entre a Sibéria e o Alasca. Para Niède, o Homo sapiens teria vindo da África pelo oceano Atlântico, num tempo em que o nível do mar era mais baixo.
Essa hipótese, embora controversa, colocou o Brasil no centro de um dos debates mais importantes da arqueologia moderna. E foi a partir desses estudos que ela ajudou a criar, em 1979, o Parque Nacional Serra da Capivara, hoje reconhecido pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade, e que tem uma área com 100 mil hectares que abrange os municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias.
TESOURO DO MUNDO
O parque, com seus 130 mil hectares e centenas de sítios pré-históricos, é considerado o maior acervo arqueológico das Américas. E Guidon foi sua principal defensora. Em 1986, fundou a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), responsável até hoje pela preservação e pesquisa no local. Dirigiu a fundação até 2019, quando assumiu o título de presidente emérita.
Niède recebeu a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico do Brasil e o título de Cavaleira da Legião da Honra da França. Foi também uma ativista incansável pela valorização da ciência, da memória e da cultura brasileira. Enfrentou a falta de recursos, o descaso do poder público e a dificuldade de manter um projeto científico no semiárido nordestino, sem nunca deixar de lutar pela preservação da Serra da Capivara.
Em 2020, já com 87 anos e com a mobilidade afetada por sequelas da chikungunya, se aposentou da presidência da Fundação Museu do Homem de Americano (Fumdham). Em 2024, foi reconhecida com o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para a Ciência e Tecnologia, o mais importante do país na área científica.
O Brasil perde hoje a guardiã do maior tesouro arqueológico brasileiro. Uma mulher que dedicou a vida a revelar, pedra por pedra, traço por traço, os vestígios de quem fomos — para que possamos entender melhor quem somos.